Óscares "CODA"

28/03/2022

Poucas alusões à guerra na Ucrânia, a emoção do ator surdo Troy Kotsur, a surpresa "KODA" e a malapata Netflix que continua: nos Óscares.

Uma noite feliz para "CODA" e "Duna", infeliz para "O Poder do Cão" e agridoce para Jane Campion (a realizadora deste filme), histórica para o streaming mas manchada pelo momento mais insólito e mediático da história recente dos Óscares

O restante da festa, incluindo a altura em que o ator Will Smith - que até venceria minutos mais tarde uma estatueta pelo papel desempenhado em "King Richard: Para Além do Jogo" - se levantou da cadeira para ir ao palco agredir Chris Rock, humorista que tinha acabado de fazer uma piada sobre a sua mulher.

Foi assim, com os prémios subitamente (e inesperadamente) remetidos para segundo plano depois de uma agressão (preparada) filmada e transmitida em direto para todo o mundo, que decorreu mais uma noite de entrega dos Óscares.

Como habitual, a cerimónia de celebração do cinema organizada pela Academia de Hollywood - que já vai na 94ª edição - decorreu no Dolby Theatre, em Los Angeles. E conseguiu também, contrariando todo o tom político e de intervenção social que vinha marcando os discursos dos vencedores nos últimos anos (nomeadamente sobre a política interna americana, Donald Trump e questões sociais como o racismo e a desigualdade de oportunidades consoante géneros e etnias), ignorar quase olimpicamente a guerra na Ucrânia, que gera receios de uma nova guerra mundial em grande escala e que até fez o presidente dos EUA viajar há poucos dias para a Polónia.

A vitória histórica de "CODA", da Apple TV+ e do streaming

Se os prémios ficaram para segundo plano na sequência da agressão, esta foi uma noite especialmente feliz para "CODA" e para a indústria do streaming. O filme, uma adaptação do francês "La Famille Bélier" (2014), narra a história de Ruby Rossi (interpretada pela atriz Emilia Jones, de 20 anos), a única pessoa com capacidades auditivas numa família de pessoas surdas. O acrónimo CODA significa, aliás, "Child Of Deaf Adults" - expressão que em português pode traduzir-se para algo como "filha de adultos surdos".

O filme realizado pela escritora e cineasta norte-americana Sian Heder estava nomeado a apenas três categorias dos Óscares. Parecia assim partir muito atrás de "O Poder do Cão", que obtivera 12 nomeações, mas também de "Duna" (dez nomeações) e de "Belfast" e "West Side Story", ambos com sete nomeações.

"CODA" acabou no entanto por conquistar os três Óscares a que estava nomeado. Venceu "Melhor Argumento Adaptado", uma surpresa relativa. Ficou com "Melhor Ator Secundário", devido ao trabalho de interpretação do ator Troy Kotsur, que se tornou o primeiro homem surdo a ganhar um Óscar como ator - depois de Marlee Matlin, que curiosamente também entra em "CODA", ter vencido o de melhor atriz em 1987 pelo filme "Filhos de Um Deus Menor", de Randa Haines.

Mais surpreendente ainda, "CODA" foi o vencedor da estatueta de "Melhor Filme", categoria em que concorria contra filmes como "O Poder do Cão", "Belfast", "Duna", "Licorice Pizza" e "Drive My Car".

Se a vitória de "CODA" foi retumbante, exponenciada ainda mais pelas expectativas modestas relativamente ao reconhecimento que se previa que o filme tivesse nos Óscares, esta foi também uma noite histórica para toda a indústria de streaming. Pela primeira vez, um filme visto maioritariamente pela televisão e não em salas de cinema venceu o Óscar de "Melhor Filme". Foi uma vitória em toda a linha para a Apple TV+, que adquiriu os direitos de distribuição do filme e o exibiu na sua plataforma digital.

Apesar do filme ter estreado no festival de cinema de Sundance, em 2021, e de ter sido exibido em algumas salas de cinema (em especial, nos EUA), foi um filme visto pela larga maioria dos espectadores através da televisão. Em Portugal, por exemplo, não estreou sequer em sala. A noite terá sido de qualquer forma agridoce para a Netflix, que há vários anos tenta sem sucesso conquistar esta categoria dos Óscares e que tem vindo a ser ano após anos a plataforma de streaming com mais nomeações.

"CODA" tornou-se também esta madrugada de segunda-feira (noite de domingo nos EUA) o primeiro filme em que os principais papéis foram atribuídos a atores e atrizes sem capacidades auditivas a vencer a categoria mais desejada dos Óscares.

Seis Óscares para "Duna", o contraste com "Belfast" e a malapata da Netflix

Se "CODA" venceu o Óscar de Melhor Filme, "Duna" foi o mais premiado da noite. A longa-metragem do cineasta canadiano Denis Villeneuve conquistou seis estatuetas: "Melhor Som", "Melhor Banda Sonora" - da autoria de Hans Zimmer, que estava a dormir num hotel em Amesterdão e foi de roupão para o bar ao saber que tinha vencido o Óscar -, "Melhor Montagem", "Melhores Efeitos Visuais", "Melhor Fotografia" e "Melhor Design de Produção".

É certo que são seis categorias maioritariamente técnicas e menos mediáticas. Tanto assim que é de todas estas, cinco foram anunciadas antes mesmo da cerimónia começar, numa tentativa de poupar tempo que ou não resultou ou teve um recuo, visto que durante a transmissão televisiva acabaram por ser revelados à mesma os vencedores de categorias técnicas (contrariamente ao que se previa) e mostrados excertos previamente gravados dos agradecimentos.

A hipótese de ser um recuo da Academia, que queria uma cerimónia de Óscares mais curta e não a teve (a duração foi a habitual), não é de descartar, já que vários membros ameaçaram demitir-se por entenderem que estas áreas técnicas do cinema estavam a ser menosprezadas.

Quem não conseguiu vencer muitas estatuetas, técnicas ou não, foi "O Poder do Cão", que era candidato a 12 Óscares e acabou por vencer apenas um - o de Melhor Realizadora, atribuído à cineasta do filme, a neozelandesa Jane Campion. É também mais uma longa-metragem exibida pela Netflix a não conseguir vencer o Óscar principal, depois de "Roma" (de Alfonso Cuarón), "O Irlandês" (de Martin Scorsese), "Marriage Story" (de Noah Baumbach), "Mank" (de David Fincher) e "Os 7 de Chicago" (de Aaron Sorkin) terem sido nomeados para a categoria de "Melhor Filme" mas terem falhado a distinção.

Entre os filmes mais nomeados, "Belfast" venceu apenas uma estatueta das sete a que era candidato - a de "Melhor Argumento Original", atribuída ao guionista britânico (que também é o realizador do filme) Kenneth Branagh - e o mesmo aconteceu a "West Side Story", a adaptação mais recente do musical por Steven Spielberg, que foi distinguido com o Óscar de "Melhor Atriz Secundária" pela interpretação da atriz Ariana Debose.

Debose, que encarnou no filme a personagem Anita, foi também a autora de um dos discursos mais emotivos da noite. A atriz, que é filha de pai porto-riquenho, pediu a quem a ouvia que a imaginasse como "uma pequena miúda sentada no banco de trás de uma Ford Focus", como já o foi no passado. "Olhem-na os olhos: o que veem é uma mulher queer, uma mulher de cor que é abertamente queer, uma afro-latina que encontrou a sua força nesta vida através da arte".

Penso que é isso que estamos aqui a celebrar. Portanto, a todos os que já tiveram a sua identidade questionada vez atrás de vez atrás de vez, ou que deem por si a viver em espaços cinzentos, prometo isto: há efetivamente um lugar para nós", referiu.

Outro dos discursos emotivos da noite foi o de Troy Kotsur, o primeiro homem surdo a vencer um Óscar de interpretação (venceu o de Melhor Ator Secundário).

Com recurso à ajuda de um tradutor de língua gestual, que chorou enquanto proferia as palavras de Kotsur, o ator norte-americano começou por fazer uma piada dizendo que chegou a pensar ensinar ao Presidente dos EUA, Joe Biden, e à sua esposa, a primeira-dama Jill Biden, alguns palavrões em língua gestual - mas acabou por se refrear.

Agradecendo à realizadora Sian Heder por ter "juntado os mundos das pessoas surdas e da pessoas que ouvem" através do filme, por ser "a nossa ponte, e o teu nome vai estar sempre nessa ponte", Troy Kotsur contou também a história trágica do pai: "Era a melhor pessoa a gesticular na nossa família. Mas teve um acidente de carro e ficou paralisado do pescoço para baixo. E deixou de poder fazer gestos".

Pai, aprendi tanto contigo. Vou sempre amar-te. És o meu herói. (...) Queria só dizer que isto é dedicado à comunidade surda, à comunidade do 'CODA' e à comunidade com algum tipo de deficiência. Este é o nosso momento. À minha mãe, ao meu pai e ao meu irmão Mark: não estão aqui hoje, mas olhem para mim agora: eu consegui. Amo-vos. Obrigado", rematou.

Nas categorias de interpretação, houve ainda um Óscar entregue a Jessica Chastain ("Os Olhos de Tammy Faye", também distinguido com o Óscar de Melhor Caracterização), que bateu pesos pesados como Olivia Colman, Penelope Cruz, Nicole Kidman e Kirsten Stewart.

O Óscar de Melhor Documentário foi por sua vez para "Summer of Soul" e o de Melhor Filme Internacional para o japonês "Drive My Car". Já na categoria de animação o Óscar foi entregue a "Encanto", que superou "Fleet", "Luca", "The Mitchells vs. The Machines" e "Raya The Last Dragon".

A melhor curta documental foi, para a Academia, "The Queen of Basketball" e a melhor curta-metragem "The Long Goodbye". Já "The Windshield Wiper" venceu na categoria Melhor Curta de Animação e "Cruella" na de melhor guarda-roupa, superando "Nightmare Alley", que valera uma nomeação ao designer luso-canadiano Luís Sequeira.

Pode consultar aqui a lista completa de vencedores:

MELHOR FILME

"CODA"
"Belfast"
"Não Olhem Para Cima"
"Drive My Car"
"Duna"
"King Richard"
"Licorice Pizza"
"Nightmare Alley"
"O Poder do Cão"
"West Side Story"

MELHOR ATOR

Will Smith, em "King Richard"
Javier Bardem, em "Being the Ricardos"
Benedict Cumberbatch, em "O Poder do Cão"
Andrew Garfield, em "Tick Tick Boom"
Denzel Washington, em "Macbeth"

MELHOR ATRIZ

Jessica Chastain, em "Os Olhos de Tammy Faye"
Olivia Colman, em "A Filha Perdida"
Penelope Cruiz, "Maes Paralelas"
Nicole Kidman, em "Being The Ricardos"
Kristen Stewart, em "Spencer"

MELHOR REALIZAÇÃO

Jane Campion, por "O Poder do Cão"
Kenneth Branagh, por "Belfast"
Ryusuke Hamaguchi, "Drive My Car"
Paul Thomas Anderson, "Licoricce Pizza"
Steven Spielberg, por "West Side Story"

MELHOR ARGUMENTO ADAPTADO

"Coda", Sian Heder
"Drive My Car", Ryusuke Hamaguchi, Takamasa Oe
"Duna", Jon Spaihts, Denis Villeneuve, Eric Roth
"O Poder do Cão", Jane Campion
"A Filha Perdida", Maggie Gyllenhaal

MELHOR ATRIZ SECUNDÁRIA

Ariana Debose, em "West Side Story"
Judi Dench, em "Belfast"
Kirsten Dunst, em "O Poder do Cão"
Aunjanue Ellis, em "King Richard"
Jessie Buckley, em "A Filha Perdida"

MELHOR ATOR SECUNDÁRIO

Troy Kotsur, em "CODA"
Ciarán Hinds, em "Belfast"
Jesse Plemons, "O Poder do Cão"
J. K. Simmons, "Being the Ricardos"
Kodi Smit-McPhee, em "O Poder do Cão"

MELHOR ARGUMENTO ORIGINAL

Kenneth Branagh, por "Belfast"
Eskil Vogt, por "A Pior Pessoa do Mundo"
Paul Thomas Anderson, por "Licorice Pizza"
Adam McKay, por "Não Olhem Para Cima"
Zach Baylin, "King Richard"

MELHOR SOM

"Duna"
"Belfast"
"Sem Tempo Para Morrer"
"O Poder do Cão"
"West Side Story"

MELHOR CURTA DE ANIMAÇÃO

"The Windshield Wiper"
"Affairs of the Art"
"Bestia"
"Boxballet"
"Robin Robin"

MELHOR GUARDA ROUPA

"Cruella"
"Duna"
"Cyrano
"Nightmare Alley"
"West Side Story"

MELHOR BANDA SONORA

"Duna", Hans Zimmer
"O Poder do Cão", Jonny Greenwood
"Encanto", Germaine Franco
"Não Olhem Para Cima", Nicholas Britell
"Mães Paralelas", Alberto Iglesias

MELHOR CURTA METRAGEM

"The Long Goodbye"
"Ala Kachuu - Take and Run"
"The Dress"
"On My Mind"
"Please Hold"

MELHOR MONTAGEM

"Duna"
"Não Olhem Para Cima"
"King Richard"
"O Poder do Cão"
"Tick Tick Boom"

MELHOR CARACTERIZAÇÃO

"Os Olhos de Tammy Faye"
"Duna"
"Casa Gucci"
"Cruella"
"Um Príncipe em Nova Iorque 2"

MELHOR FILME DE ANIMAÇÃO

"Encanto"
"Flee"
"Luca"
"The Mitchells vs. The Machines"
"Raya The Last Dragon"

MELHOR CANÇÃO ORIGINAL

"No Time to Die", Billie Eilish, Finneas O'Connell ("Sem Tempo Para Morrer")
"Dos Oruguitas", Lin-Manuel Miranda ("Encanto)
"Be Alive", Beyoncé Knowles-Carter, Dixson ("King Richard")
"Down to Joy", Van Morrison ("Belfast")
"Somehow You Do", Diane Warren ("Four Good Days")

MELHOR DOCUMENTÁRIO

"Summer of Soul (Or, When The Revolution Could Not Be Televised)"
"Flee"
"Attica"
"Riding with Fire"
"Ascension"

MELHOR CURTA DOCUMENTAL

"The Queen of Basketball"
"Audible"
"Lead Me Home"
"Three Songs For Benazir"
"When We Were Bullies"

MELHORES EFEITOS VISUAIS

"Duna"
"Free Guy"
"Sem Tempo Para Morrer"
"Shang Chi e a lenda dos Dez Anéis"
"Spider Man: No Way Home"

MELHOR FOTOGRAFIA

"Duna"
"Nightmare Alley"
"The Tragedy of Macbeth"
"O Poder do Cão"
"West Side Story"

MELHOR DESIGN DE PRODUÇÃO

"Duna"
"Nightmare Alley"
"O Poder do Cão"
"The Tragedy of Macbeth"
"West Side Story"

MELHOR FILME INTERNACIONAL

"Drive My Car"
"Flee"
"A Mão de Deus"
"Lunana: A Yak in the Classroom"